A história secreta do cinema alemão:

Como o Novo Cinema abalou os anos 70 e nos ensina sobre incentivo à arte até hoje.

Em menos de 15 anos de carreira, Rainer Werner Fassbinder completou mais de 40 longas-metragens.

Claro, um nome como o de John Ford assinou mais de cem filmes na carreira. E essa frequência alta de longas não era incomum para diretores dos sistemas de produção antigos. É importante ressaltar, contudo, que Fassbinder dirigiu num período e em condições de trabalho que não envolviam uma estrutura de grande estúdio e equipes grandes, numa época em que o tempo de produção de filmes já havia se estendido e, ademais, diferente de um profissional como Ford, ele também escrevia os roteiros e, por vezes, atuava em seus filmes.

Se engana quem olha para uma carreira de menos de 20 anos onde se encaixam esses mais de 40 longas-metragens produzidos, distribuídos, adorados e aclamados (e mais um bocado de peças e produções para a TV) e pensa que o volume dessa produção veio à custo da qualidade do trabalho.

Rainer Werner Fassbinder, maior expoente do Novo Cinema Alemão.

Pelo contrário, a produtividade de Fassbinder é mais um aspecto folclórico de sua carreira do que a essência de seu legado, que, hoje, repousa muito mais sobre a qualidade dos filmes e sua relevância temática. Qualidade essa que é muito associada à força emocional de seu cinema, um cinema visceral e trágico, mas recheado de momentos de beleza irrompendo da miséria emocional de seus personagens. 

Seus temas, sempre muito pessoais, não eram limitados por tabus. Pelo contrário. Sempre muito pronunciada em seus scenarios, a sociedade alemã era sua grande fonte de inspiração. Mas era em seus tipos menos heróicos e mais machucados que Fassbinder encontrava protagonistas: homossexuais, travestis, judeus, burocratas deprimidos e reprimidos, prostitutas, viciados e imigrantes. Esses heróis que, na maioria das vezes, não conseguem se salvar de si mesmos, contracenam com capitalistas pervertidos,  autocratas, cônjuges negligentes, canalhas de toda ordem e, de maneira geral, com uma sociedade indiferente ao seu sofrimento.

Fassbinder é o que se chama de um diretor cultuado. Ele fez escola, inspirou cineastas no mundo todo. Um ícone do cinema queer, do cinema alemão, do cinema melodramático e do cinema em geral.

Mas nada disso explica como esse homem conseguiu produzir tantos longas-metragens autorais ou, ainda, por que conhecer a explicação é interessante para profissionais de cinema no Brasil e em qualquer lugar do mundo hoje.

Então vamos lá, vamos falar de produção.

Como já vimos, a produção de Fassbinder se concentra numa janela relativamente curta de tempo (entre 1966 e 1982) e num único país, o que significa que ele lidou com um certo modo de produção específico a esse contexto, a dizer, o da Alemanha da década de 70. Antes de olharmos para os métodos individuais do diretor, é importante entender como se faziam filmes nesse contexto.

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Como se fazia cinema na Alemanha nos anos 70: Subsídio, revolução e TV.

Boa parte dos longas alemães da época foram financiados através de subsídios governamentais, o que, até aí, não é muito diferente do modelo de financiamento que encontramos hoje na América Latina e na Europa até hoje. 

Algo muito importante para o cinema europeu na segunda metade do século XX até o início do XXI foi a participação das emissoras de TV governamentais no fomento e distribuição dessas obras e artistas. E na Alemanha, exemplo típico das sociais-democracias europeias, isso foi muito forte. 

A participação das emissoras nacionais, organizações geridas como instituições sem fins lucrativos custeadas com dinheiro público (num esforço cooperativo entre as unidades federativas) veio a ser, para Fassbinder e outros cineastas, uma benção e uma maldição ao mesmo tempo, mas já vamos chegar nesse ponto.

O Medo Consome a Alma, de Fassbinder.

Entre os órgãos públicos que distribuíam o dinheiro para fomento da produção cinematográfica alemã estavam o Conselho Federal de Cinema da Alemanha. Os dados a seguir constam em uma notícia do New York Times de 1977: o órgão angariava cerca de 7.5 milhões de dólares por ano para distribuir entre projetos selecionados pelo comitê avaliador. Esse comitê era composto por apenas 11 pessoas, de posições eminentes no cinema alemão (donos de cinemas, críticos, empresários do ramo). O fundo era angariado a partir de uma taxa de 15 centavos de Marco (moeda alemã da época) sobre cada ingresso de cinema vendido no país. Entre os critérios de seleção para recebimento da verba estava o desempenho em bilheteria dos filmes prévios das produtoras proponentes. A partir de certa quantia angariada com venda de ingressos, esses realizadores se tornavam elegíveis para receber o apoio do órgão.

Asas do Desejo, de Wim Wenders.

Outro ponto importante é que a participação das emissoras de TV conferiam uma estrutura quase industrial de produção, com profissionais técnicos e criativos na folha de pagamento regular dessas instituições, o que influenciou também as formas de filmar. 

Vale ressaltar, também, que os programas dessas emissoras serviram como prova de fogo para o talento de vários diretores dessa geração. Foi em dramas policiais e outra variedade de programas televisivos que muitos desses artistas foram introduzidos ao set de filmagem.

A consequência negativa da participação das emissoras de TV, para os realizadores, era a falta de presença das suas produções nas salas de cinema. Muitos filmes eram exibidos primeiro na televisão e só depois chegavam no cinema, se chegassem. Dessa forma, vemos lá atrás um problema que hoje é muito comentado desde que os serviços de streaming passaram a assumir também o papel de produzir seus conteúdos originais, estreando na internet filmes que quinze anos atrás iriam para o cinema. Isso nos ensina como a história da mídia não é linear.

Manifesto Oberhausen e suas consequências dramáticas

Em 1962 é publicado o Manifesto Oberhausen, assinado por um grupo de jovens cineastas alemães que, entre as preocupações com a decaída do público nas salas em decorrência da crescente popularização da TV nas casas, declarava o “velho cinema morto. Nós acreditamos no novo cinema”. Era a cultura germânica tentando se adequar aos tempos modernos da cultura de massa e a resposta artística que a Europa e o mundo viram no cinema de países como a França e a Itália no mesmo período. Foi o ponto de largada para o Novo Cinema Alemão, cujos maiores expoentes (incluindo Fassbinder) não tiveram envolvimento direto com o Manifesto, mas seguiram sua deixa no sentido de uma produção mais artística e socialmente consciente.

Também se referia ao cinema dessa geração, que incluiu o cinema de Wim Wenders, Jean-Marie Straub, Werner Herzog, entre outros, como Autorrenfilm, o cinema de autor na Alemanha. O termo designava diretores que também assinavam seus roteiros, o que demonstra um pouco dos critérios críticos presentes na cultura cinematográfica em que Fassbinder trabalhou. Valorizava-se, no meio especializado, o diretor-roteirista enquanto nova face da arte germânica, enquanto tipo de sua iteração mais moderna. Com algum atraso, a Alemanha modernizou seu cinema com artistas de peso na sétima arte.

Reunião do Filmverlag der Autoren

A preocupação dentro do meio do cinema com esse processo é evidenciado pela criação do Filmverlag der Autoren, um conglomerado multifuncional de profissionais de cinema. O grupo era organizado em torno dos projetos desses cineastas autores e buscava maior liberdade criativa do que obtida na TV, até porque boa parte das ambições artísticas dessa geração girava em torno de temas pesados, política radical e propostas estéticas inovadoras; além de assumir a responsabilidade sobre a distribuição dos filmes. A Filmverlag atuava em todas as etapas de realização do filme, funcionando como uma indústria artística, o que, por sua mera natureza, é uma contradição que ameaçava a sua saúde financeira. É claro que a ambição artística custava muito mais do que o retorno das obras, o que colocava a empreitada em risco constante de falência.

Aguirre, A Cólera dos Deuses, de Werner Herzog.

De qualquer forma, foi uma instituição importantíssima na produção e distribuição desses filmes, gerida por cineastas engajados com um projeto artístico e cultural.

O cinema, afinal, é um complexo investimento empresarial e, ao mesmo tempo, esforço da sensibilidade individual de seus artistas. Nomes como Fassbinder jamais teriam entrado na consciência popular caso não houvesse investimento e valorização intelectual de artistas de seu perfil no período, apesar das dificuldades que enfrentou, dificuldades comuns a muitos artistas autênticos que resolvem usar o cinema como meio de criação. Nos faz refletir sobre o número de filmes que não são feitos, os movimentos cinematográficos suprimidos pela mera tendência de opinião institucionalizada de um certo lugar e época.

Esse resumo dá uma noção das forças envolvidas na cena cinematográfica alemã em que Fassbinder trabalhou. O governo, a televisão, o cinema novo, a infraestrutura, o modernismo e o culto aos autores. 

Resta a questão: quais eram as características pessoais de Fassbinder que o levaram a produzir tantos filmes?

Continua na semana que vem…

Fontes:

https://www.newyorker.com/magazine/2003/02/10/fast-times

https://en.wikipedia.org/wiki/Rainer_Werner_Fassbinder#:~:text=Early%20films%20and%20acclaim,-Fassbinder%20used%20his&text=Fassbinder%20developed%20his%20rapid%20working,year%20on%20extremely%20low%20budgets.

https://www.dw.com/en/the-legacy-of-german-filmmaker-rainer-werner-fassbinder/a-19407243

6 Filmmaking Tips from Rainer Werner Fassbinder

https://firstlawcomic.com/how-many-films-did-fassbinder-direct/https://www.dw.com/en/what-defined-filmmaker-rainer-werner-fassbinder/a-53589684

https://www.rogerebert.com/interviews/daniel-schmid-the-fleeting-days-and-eternal-nights-of-rw-fassbinder

https://www.nytimes.com/1977/12/11/archives/german-films-are-subsidized.html

https://www.theguardian.com/film/2017/mar/27/rainer-werner-fassbinder-bfi-season-hanna-schygulla-interview

Folder da Exibição Retrospectiva Rainer Werner Fassbinder, concebido por Juliane Lorenz para exibição no Goethe Institute em Berlim.

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